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Por Luciano Mendonça, sociólogo e militante do PT

No artigo primeiro de seu estatuto, o Partido dos Trabalhadores define-se como um partido que tem por objetivo a construção do socialismo democrático, que se caracterizaria como uma ordem social na qual não existiria exploração, dominação, opressão, desigualdade, injustiça e miséria. O meio para atingir esse fim: as lutas por democracia, pluralidade, solidariedade, transformações políticas, sociais, institucionais, econômicas, jurídicas e culturais.

Analisando esse artigo do estatuto petista, coloco-me duas perguntas, a saber: (1) para o PT, é o socialismo democrático que leva à nova ordem social expressa, ou o contrário, é a nova ordem que nos levaria ao socialismo democrático?; (2) as lutas que levariam à nova ordem social (por democracia, pluralidade, entre outros) se fariam através de uma luta direta contra o capital, ou através de reformas dentro do sistema capitalista?

Revolução ou reforma, ditadura do proletariado ou democracia socialista, o PT nunca conseguiu e nunca se propôs avançar na resposta para essas questões, preferindo deixar para os desdobramentos dos processos políticos e sociais futuros a respostas para a questão da via petista para o socialismo. Mas isso não significou, é preciso que se diga, a falta de debate interno sobre o tema, muito pelo contrário, internamente, libertários, socialistas católicos, reformistas, leninistas e trotskistas degladiaram-se ao redor do tema.

Afirmando-se como um partido de esquerda pós-comunista e pós-social-democrata, o fato é que o PT não conseguiu encontrar uma via alternativa para o socialismo entre o reformismo e revolução, e o debate assim foi congelado dentro do partido. O resultado dessa indefinição, é uma postura um tanto contraditória do PT, que governa como partido reformista e teoriza muitas vezes como partido revolucionário; que dentro do Brasil se comporta como centro-esquerda e, no exterior, como esquerda mais radical; que promove um encontro da Internacional Socialista, mas não aceita um acento de observador na mesma organização internacional.

Com mais de 30 anos de existência e por mais uma década governando o Brasil, o PT é um os pilares de sustentação da democracia brasileira, elemento tão importante do nosso sistema político que um esforço para melhor definir o seu projeto para o Brasil contribuiria para o maior amadurecimento das instituições políticas nacionais. Nesse sentido, o Partido dos Trabalhadores deveria promover o reencontro de suas práticas políticas com o seu programa partidário, superando essa separação, que ocorreu definitivamente no momento da publicação da Carta ao Povo Brasileiro, de 2002.

A Carta ao Povo Brasileiro foi uma iniciativa lúcida e necessária de um partido que estava  prestes a eleger o presidente de uma das maiores economias mundiais. A Carta buscou deixar claro para o mundo que um governo petista apresentaria um modelo alternativo ao neoliberal, mas que esse seria construído respeitando as regras do jogo democrático e, principalmente, a economia de mercado baseada na livre iniciativa. A ideia de não embarcar em uma aventura política e econômica foi uma decisão acertada do PT, que assume a presidência da república em um momento da história em que todas as tentativas de superação da democracia representativa e da economia de livre mercado se mostraram ineficazes na consecução dos ideais de liberdade, igualdade e justiça social.

O grande problema da Carta ao povo Brasileiro não está no seu conteúdo, mas no modo como foi elaborada. Ou seja, essa não foi o resultado de um grande debate interno de revisão teórica, mas fruto da necessidade imediata de tranquilizar os mercados frente a iminência da vitória do partido na eleição presidencial.

A Carta ao Povo Brasileiro deve ser visto como o momento final de um processo de separação entre prática e teoria no PT, que se iniciou ainda nos anos 1990 e é resultado da crise de paradigma que atingiu a esquerda em todo mundo, por ocasião da crise do estado bem-estar social, do socialismo real e, mesmo, do modelo nacional desenvolvimentista. Desde então, despojados de velhas certezas, governos que se proclamam representantes da esquerda e petistas estão criando política sem pensar no que estão fazendo. Assim, é preciso colocar carne teórica no esqueleto da prática política, não apenas para endossar o que o partido vem fazendo, mas para dar a esse maior censo de direção e propósito.

Para a realização desse exercício, de saída, o PT deve considerar detidamente a questão do socialismo e da democracia. Construir uma concepção teórica coerente com sua prática significa para o partido consolidar uma base teórica sustentada nesses dois princípios políticos fundamentais. Mas… qual socialismo? Qual democracia?

Norberto Bobbio, de forma muito espirituosa, afirmou que “o socialismo é como felicidade, todos o desejam porque cada um pode imaginá-lo de acordo com seus próprios desejos”. Isso é fato. Ou podemos afirmar que o socialismo do PT é o mesmo do PSTU?

O socialismo, que no início se caracterizava como um movimento filosófico e ético, logo se metamorfoseou em doutrina econômica, consolidando-se como tal com os escritos de Marx. Os sistemas econômicos planificados implementados pelos países socialistas no século XX foram o resultado prático dessa doutrina e se mostraram ineficazes como alternativa à economia de mercado baseado na livre iniciativa. Dessa forma, ficou a esquerda sem um modelo econômico alternativo que pudesse sustentar as suas políticas públicas.

Hoje, não existe no horizonte visível uma proposta de sistema econômico viável que prescinda totalmente do sistema de mercado e da livre iniciativa. Diante do fracasso econômico do modelo planificado implementado pelo socialismo real, o socialismo deve ser retomado como movimento ético e filosófico. O socialismo enquanto movimento ético se sustenta em três valores: justiça social, igualdade entre os cidadãos e igualdade de oportunidades. Esses princípios devem estar presentes em cada uma das políticas de um governo que se quer de esquerda, inclusive na área econômica. Nessa área, tendo em consideração que a economia de livre mercado possui limitações que impedem uma distribuição justa e adequada de bens e serviços na sociedade, um partido socialista não podem abrir mão de um estado com capacidade de induzir o desenvolvimento econômico com foco no pleno emprego, por exemplo.

Já, no que tange a democracia, tendo em vista que para muitos o conceito de democracia é elástico, podendo ser puxado de um lado para o outro à vontade, é preciso que se tenha claro com qual democracia o partido se compromete em qualquer situação. Sendo coerente com a sua prática, o PT deveria afirmar o seu compromisso com a democracia enquanto governo de todos, ou de muitos ou da maioria, contra o governo de um só, ou de poucos ou de uma minoria. Isso, na prática, significaria o compromisso com três regras que regulam a relação entre liberdade e poder das quais nos fala Bobbio: “[1] o sistema democrático deve garantir a existência de uma pluralidade de grupos políticos organizados, que competem entre si com o objetivo de reunir reivindicações e transformá-las em deliberações coletivas; [2] aquela segundo a qual os eleitores devem poder escolher entre alternativas diversas; e, enfim, [3] aquela segundo a qual a minoria deve ter garantindo o seu direito de poder tornar-se, nas periódicas consultas eleitorais, ela mesma maioria”.

Se entendidos dessa forma, a prática política petista coadunaria com a perspectiva do socialismo democrático, o que permitiria o início da construção de uma teoria capaz de sustentar as ações do PT nos governos, parlamentos e movimentos sociais. Ter um programa político efetivo sustentado em uma teoria consistente é fundamental para um partido que pretende ter respaldo social. O PT, justamente por ser um dos únicos partidos brasileiros a contar com um programa consistente baseada em uma teoria sólida, alcançou centralidade poucas vezes vista na história política nacional. Destarte, para continuar figurando entre os principais partidos políticos brasileiros por mais 30 anos, precisa o PT urgentemente apresentar ao Brasil um projeto de sociedade, um projeto que mostre que suas políticas nas áreas econômica, social, cultural, educacional, ambiental, entre outras, estão conectadas por convicções éticas e filosóficos que o movimenta e que pode movimentar o país e o mundo,  conquistando novamente mentes e corações, especialmente da juventude.

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