Afinal, o que está acontecendo na Venezuela? Por Elika Takimoto.

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Ser filiada ao PT não é para os fracos, pois somos cobrados não somente pelos nossos erros – inerentes a qualquer pessoa que tente acertar e faça alguma coisa – como também a dar explicação sobre tudo o que acontece nesse Brasil.

Temos que ser onipresentes nas redes e oniscientes em leis, em história, em geografia, em economia e até em genética para conversar com simpatizantes de Damares. Se deixarmos de falar sobre algo, somos acusados rapidamente de estarmos fugindo ao debate.

Não comentei a ida da Gleisi à Venezuela para a posse de Maduro de forma imediata porque simplesmente não podia me balizar para emitir opinião em cima do que a grande mídia mostra. O fato de ter sido candidata ano passado me deixou claro isso (testemunhava uma coisa acontecer na minha frente e via outra completamente diferente ser noticiada). Tampouco quando conversei com venezuelanos de forma particular me senti preparada para explanar sobre o assunto. Cada um falou uma coisa.

Imagina alguém de fora querendo entender o que ocorre com o Brasil entrevistando duas pessoas: uma que apoia Bolsonaro e outra, como eu, radicalmente contra tudo o que ele tem feito. Cada pessoa diria uma coisa. Ambas vivendo no mesmo país, vendo as mesmas medidas sendo tomadas e, ainda assim, contariam uma história completamente divergente. Dessa forma aconteceu comigo quando conversei com quem mora na Venezuela.

Daí, a gente faz como? No meu caso, saí catando artigos e livros que se complementassem de uma certa forma. Isso levou um certo tempo.

Tentei resumir o máximo que entendi. Não coloquei números para não deixar o texto muito pesado, mas eles são de fácil acesso. Ao final, vou colocar o que penso sobre a ida da Gleisi à posse de Maduro em cima da minha vivência no partido.

Para começar, precisamos todos ter consciência de que:

– a Venezuela está sentada na maior reserva provada de petróleo do mundo;

– os EUA são os maiores consumidores de óleo do planeta; e

– a distância entre EUA e Venezuela é bem menor do que entre EUA e o Oriente Médio. Medida em tempo, a diferença dessa distância é em torno de 30 dias de navio.

A exploração não começou agora e sim desde o início do século passado, quando a exportação de petróleo se dava principalmente para o mercado norte-americano. EUA e Venezuela viviam como um casal recém-casado com o marido se metendo na vida da esposa e controlando cada passo.

A Venezuela chegou a ser a maior exportadora de petróleo do mundo. Mas como ‘crescimento econômico’ e ‘diminuição de desigualdade social’ não são sinônimos, a pobreza crescia a olhos vistos e o controle do maridão seguia firme e forte com a esposa cada vez mais dependente do macho opressor. Sequer ela podia conversar com outros países sobre políticas econômicas.

Como todo controlador precisa manter as rédeas e garantir seu poder, articulado pelo próprio EUA, foi criado o Pacto de Punto Fijo, pelo qual os partidos tradicionais e conservadores alternavam-se no poder impedindo a entrada de novos partidos. Isso foi em meados do século passado.

Saía um partido conservador e entrava outro nessa “democracia”. O voto era facultativo e era como se tivéssemos zonas eleitorais somente no sul e sudeste do Brasil. Grande parte da população pobre não votava e prefeitos e governadores eram nomeados pelo presidente. Temos registros de vários jornalistas que se manifestaram contra tudo isso que foram presos nessa época.

O casamento, com todo esse controle, seguia estável com outras medidas sendo tomadas para garantir essa firmeza (leiam sobre a Doutrina Betancourt). Lembrem-se que “casamento estável” não é sinônimo de um “casal feliz”. Neste caso, a esposa seguia cada vez mais isolada diplomaticamente sem poder conversar com outros partidos e até mesmo com seus vizinhos (que na época viviam sob uma ditadura) como o Brasil.

Lá no final do século passado, havia muito petróleo a tal ponto de mexer com o preço dessa commodity diminuindo-o consideravelmente no mercado internacional. Outros fatores como crises e pobreza interna fizeram com que a Venezuela buscasse saídas e fosse timidamente conversar com outros países. Lentamente, a Venezuela começou a inserida em outros cenários e relações.

Pobreza é forma de falar bem genérica. Parecia que o negócio lá era muita miséria mesmo. Um pouco menos da metade vivia na pobreza extrema mesmo com a Venezuela tendo a maior reserva de óleo do mundo. Um a cada cinco venezuelanos passava fome. Saúde e educação iam na mesma esteira. Os números são horrorosos. A mortalidade infantil era quase o dobro da brasileira de hoje.

No final do século passado, com o país nesse caos e nessa miséria, começaram as manifestações populares duramente reprimidas pela força local. Gente à beça morreu e universidades foram fechadas. Gente pobre, vale observar. Mil. Dois mil. Três mil.

Uma coisa estava clara: o casamento EUA-Venezuela havia chegado no limite e o divórcio era iminente. Nesse contexto, surgiu Hugo Chávez como um salvador. Ele mandou às favas a política de relação única com os EUA, modificou várias estruturas e conseguiu melhorar os índices de pobreza. A quantidade de gente que passou a comer melhor foi alarmante. Chávez implementou várias políticas sociais que beneficiaram o povo mais pobre e os idosos. Além disso, conseguiu diminuir a mortalidade infantil e aumentar o número de hospitais. As universidades estavam cheias de gente estudando e a Venezuela chegou a ser o quinto país com maior proporção de estudantes universitários no mundo. Para se ter uma ideia, a Venezuela, nessa época, teve o maior programa de habitação popular da América Latina.

O país do petróleo entrou para a Mercosul e rompeu com aquela vida de esposa dependente passando a investir em outras relações bilaterais como a que teve com o Brasil, na qual saímos, economicamente falando, beneficiados (pois ela comprava muita coisa nossa e facilitava para que também comprássemos dela).

Uma nova fase, literalmente, havia chegado.

A Venezuela se aproximou de vários países e ainda se colocou de forma categórica contra políticas impostas pelos EUA. Começou a vender petróleo pelo preço que quisesse para quem ela quisesse, digamos assim. Teve muito pobre deixando de ser pobre nesse contexto. Muita gente que era invisível foi empoderada e mobilizada politicamente naquela conjuntura.

O macho aceitou? Claro que não. Voltou para matar a ex-esposa que não queria mais ser exclusivamente dele. Chávez quase foi executado no início deste século, como alguns devem lembrar. Os conservadores jamais aceitam perder. Foi um quiprocó dos diabos. Golpe e mais golpe de todos os lados. Teve até estatal de petróleo parando de funcionar, o que fez com que a inflação disparasse, o desemprego aumentasse e faltou até gasolina no país com a maior reserva de petróleo do mundo.

Macho embuste quando perde poder prefere ter a mulher toda quebrada e cheia de hematomas ao lado dele do que ver a ex de salto alto desfilando por aí.

Ainda assim, no meio dessa confusão, tinha eleições e a imprensa era livre, vale observar.

Chávez morreu em 2013. Isso deu esperança para a oposição que, óbvio, queria voltar ao poder. O que aconteceu? Maduro venceu as eleições quase na mesma emoção que vimos com Dilma e Aécio. Disputa acirradíssima.

A oposição não aceitou a derrota e foi para as ruas de forma violenta. Era fogo aqui, fogo lá. Bomba pra cá, bomba acolá…

Vou fazer uma pergunta: quem tinha interesse em noticiar essa bagunça nas ruas para dar a narrativa que lhes favorecesse e contar para o mundo inteiro sua versão? Dou um bombom para quem acertar.

Parabéns. É seu.

Quase cinquenta pessoas morreram, a maioria chavistas ou pessoas sem filiação partidária, e equipamentos públicos foram destruídos. Temos indícios fortes para acreditar que há uma conexão entre a extrema direita da Venezuela com grupos de extermínio de outros países que apostam sistematicamente na violência como arma política preferencial.

Chávez foi perfeito? Claro que não. Muito menos santo. Isso é fato. Ele não conseguiu fazer, por exemplo, com que a economia venezuelana se livrasse da dependência das exportações do petróleo e melhorar de forma eficiente a agricultura e indústria da Venezuela. Assim, o gasto público dependia principalmente da renda petroleira. Com a grande queda dos preços, de novo, dessa commodity a partir de 2012, a economia da Venezuela passou a enfrentar grandes dificuldades.

Pior do que tudo isso é haver uma guerra econômica contra a Venezuela que se utiliza do desabastecimento programado de bens essenciais, produzido pela especulação cambial e pelo boicote político. Não é simples explicar a falta de alimentos e remédios baseados em números. Precisamos conectar mais dados e correr atrás de informações.

Veja bem, os números mostram que de 2004 para 2014 houve um aumento de mais de 200% na importação de alimentos e de mais de 300% na importação de remédios. Um dos motivos da escassez de alimentos é que muitos são contrabandeados para o exterior, principalmente para a Colômbia, onde são vendidos com muito lucro. Outra parte é vendida no mercado interno, mas a preços excessivos, gerando inflação. Outro fato a considerar é que os depósitos em dólares de empresas venezuelanas no exterior cresceram quase 250% em apenas cinco anos. Ou seja, dinheiro para a importação há. O ponto é porque não estava sendo usado ali dentro e sim sendo desviado, pelo que tudo indica.

Além disso, o acesso ao crédito no mercado internacional está restrito e podemos dizer que a Venezuela sofre, desde 2013, com um bloqueio financeiro não oficial.

Essa guerra econômica vem ajudando a radicalizar ainda mais o processo político na Venezuela. A violência se generalizou para ambos os lados e teve até gente que foi queimada viva.

Não há mais diálogo entre o Poder Executivo e a Assembleia Nacional. Assim sendo, a Venezuela agora está com uma guerra civil iminente. Por isso foi lançada a alternativa de uma Assembleia Constituinte há pouco, o que criou uma oportunidade para que se estabelecesse um diálogo que superasse o atual impasse político e institucional.

A oportunidade não foi aproveitada pela “oposição democrática”, que a boicotou.

Sabemos o quanto se fala em Venezuela aqui no Brasil. Temer, por exemplo, fez da suspensão da Venezuela do Mercosul a sua diretriz principal em política externa, atuando como braço auxiliar dos EUA no subcontinente. Isso todos testemunhamos. O empenho do Brasil contra a Venezuela por Temer foi de tal ordem que a suspendeu duas vezes do Mercosul. Esse esforço do governo Temer para a desestabilização da Venezuela ganhou corpo, agora, com o governo Bolsonaro que quer se somar a um acirramento do bloqueio econômico contra a Venezuela e, possivelmente, a uma intervenção militar naquele país.

As dificuldades que o povo da Venezuela passa foram, segundo minhas leituras, agravadas pelas sanções e bloqueios econômicos impostos pelos EUA e seus aliados. A Venezuela é muito dependente de importações e há países como a Colômbia se recusando a vender até remédio. Como o povo vai parar de sofrer?

Qual a primeira coisa que foi pensada pela oposição depois que Maduro foi reeleito? Negar o reconhecimento de sua vitória, mesmo sabendo que ela foi acompanhada por centenas de observadores internacionais, que não a contestaram. Bolsonaro, sob essa ótica que lhes aponto, tem sido um facilitador para que os EUA invadam a Venezuela “para salvar os venezuelanos de Maduro”.

Quem sofre? Quem perde? Sempre ele: o povo mais pobre.

Isso posto, agora posso opinar. O que dona Gleisi foi fazer lá no meio dessa confusão dos diabos?

Antes de tudo, Gleisi foi ser coerente com os princípios do partido e com essa narrativa que lhes apresentei balizada por outras fontes que não incluem somente a mídia tradicional.

Vimos que há um movimento coordenado de intervenção sobre a Venezuela, patrocinado pelo governo dos Estados Unidos e por governos de direita na América Latina. Sabemos que nosso presidente bate continência, literalmente, para a bandeira americana.

O voto na Venezuela continua ser facultativo e Maduro foi eleito com quase 70% dos votos, numa eleição que teve três candidatos de oposição concorrendo e, como já dito, assistida e considerada legal internacionalmente.

Preciso de novo retomar o que já disse no início e, se possível, peço para que olhem no mapa a distância entre a Venezuela, detentora das maiores reservas de petróleo do planeta, e os EUA e entre os EUA e o Oriente Médio.

Será que há algum interesse de Bolsonaro, que até agora não apresentou uma proposta para diminuir a desigualdade social no nosso país, em ajudar o povo venezuelano? Ou será que Bolsonaro está apoiando os Estados Unidos e quer avançar sobre essa reserva estratégica?  O governo de Maduro desestabilizado iria beneficiar a quem?

Se estivessem mesmo preocupados com mortes, com direitos humanos desrespeitados e com o povo sofrendo, por que não se importam com outros países também e só com a Venezuela? Qual o motivo de tanto foco?

O mesmo Bolsonaro que diz se preocupar com o povo da Venezuela a ponto de justificar uma invasão para “salvá-la” é o que acaba de assinar um decreto que permite a posse de armas como solução para diminuir a violência no Brasil. Quem acredita nesse discurso à luz dos lucros gigantescos das indústrias armamentistas?

Bem lembrado pela própria Gleisi, quando o ex-presidente George W. Bush quis comprometer o Brasil na guerra contra o Iraque, o ex-presidente Lula reagiu com altivez: “Nossa guerra é contra a fome”.

Não é preciso estar de acordo com Nicolás Maduro e com os processos institucionais venezuelanos para entender a necessidade da presidenta do maior partido de esquerda da América Latina ter estado presente nessa posse que, vale lembrar, contou com o prestígio de delegações de 94 países e organizações internacionais, enquanto Bolsonaro reuniu apenas 46 delegações estrangeiras em sua posse.

No mais, o PT sempre esteve presente em vários países em que os direitos do povo foram ameaçados, por interesses das elites e dos interesses econômicos externos. Pela sua essência, o partido que escolhi me filiar sempre foi solidário aos que mais precisam de apoio, e os governos liderados pelo PT sempre foram protagonistas de mediações para buscar soluções pacíficas. O partido sempre se pautou pelo respeito à autonomia e à soberania de todas as nações.

A não presença do PT na posse de Maduro significaria, sem dar margem para qualquer outra explicação, que nós também concordamos com a política intervencionista incentivada pelos Estados Unidos e com a adesão do atual governo brasileiro e outros governos reacionários.

Para além disso, Gleisi não foi representando o Brasil e sim o PT, mostrando para o mundo que o governo Bolsonaro contra a Venezuela tem forte oposição no Brasil.

No que pese a complexidade do assunto e o reconhecimento de que há infinitas formas de interpretar o mesmo fato, fica aqui minha modesta colaboração sobre esse histórico episódio e reafirmo o orgulho de fazer parte desse partido que tanto luta pelo povo.

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