Reforma política: o que sobrou

Barata denuncia proteção a Julio Lopes
16/10/2017
A escravidão no Brasil do povo e no Brasil da elite
17/10/2017

Por Gabriela Araújo, advogada

Em agosto do corrente ano, quando as deliberações e votações sobre a reforma política tiveram início, escrevi um artigo alertando da necessidade de uma reforma profunda em nosso sistema eleitoral, tendo em vista o grande déficit democrático que o atual sistema proporcional puro gera nas relações entre o eleitor e seus representantes no parlamento.

A proposta de adesão ao sistema distrital misto, com alguns ajustes ao modelo alemão, aliada à implementação do financiamento público de campanha, nesse sentido, trazia pela primeira vez uma expectativa real e positiva de mudança, após a realização de sucessivas e inexpressivas “minirreformas eleitorais” ao longo da última década.

Sistema eleitoral: cláusula de barreira e fim das coligações proporcionais

No entanto, dois meses depois da submissão do relatório final da proposta de reforma política à avaliação do Congresso Nacional, o resultado foi a manutenção do sistema eleitoral proporcional aberto, ou seja, a mudança mais esperada não aconteceu, assim como outros pontos em pauta no projeto foram rejeitados, como o fim dos cargos de vice, o fim dos suplentes de senadores, e o estabelecimento do limite de dez anos para mandatos no Poder Judiciário.

O fim das coligações em eleições proporcionais (deputados e vereadores) a partir de 2020 e a imposição de uma cláusula de barreira ou de desempenho para os partidos já a partir de 2018 ficam assim como “prêmios de consolação” diante da impossibilidade de uma reforma mais profunda do sistema eleitoral.

A cláusula de barreira coloca limites para o recebimento de fundo partidário e gozo de tempo de propaganda eleitoral para os partidos que não obtiverem um desempenho mínimo nas eleições ao parlamento. E o fim das coligações proporcionais impede que candidatos de partidos distintos sejam alçados ao parlamento por “puxadores de voto”.

Se por um lado ainda será possível que um candidato com poucos votos seja eleito pelos muitos votos de outro candidato do mesmo partido, já que o nosso sistema permanece sendo proporcional aberto, por outro lado os programas partidários serão fortalecidos: o eleitor saberá que estará votando no candidato e no seu partido correspondente, com uma ideologia determinada, o que não seria possível diante de coligações entre partidos de ideologias distintas.

Desta forma, ambas as medidas servirão para coibir a criação e subsistência daqueles conhecidos “partidos de aluguel”, partidos nanicos, sem programa definido, que costumavam aparecer apenas durante os períodos eleitorais para “vender” tempo de propaganda na TV aos partidos maiores que estivessem dispostos a com eles coligar. O efeito pior desse tipo de coligação era que, por termos um sistema proporcional aberto, candidatos inexpressivos e desconhecidos do povo, com irrisórios números de votos, assumiam cadeiras no parlamento puxados pelos candidatos mais populares, sem sequer integrar o mesmo partido e ideologia programática daqueles que receberam o voto do povo.

Financiamento público de campanha

Outra mudança da reforma política que ficou aquém das expectativas foi o financiamento público de campanha, que foi adotado, mas de forma distinta daquela proposta inicialmente pela Comissão de Reforma Política: em razão das dificuldades para seu custeio, o valor destinado ao Fundo Especial de Financiamento de Campanha ainda será insuficiente para cobrir integralmente as eleições de 2018. Além disso, o estabelecimento de novos limites às doações feitas pelos candidatos para si próprios (autofinanciamento) e também a imposição de limites mais justos às doações advindas de pessoas físicas foram vetados.

Com isso, aqueles candidatos com maior poder aquisitivo e que pertencem a um ciclo de relações com poder econômico maior continuam gozando de privilégios perante os demais, já que, desde a proibição das doações empresariais, os autofinanciamentos de campanha criaram grandes distorções entre os candidatos. O prefeito eleito em São Paulo, por exemplo, João Dória, doou 4,4 milhões de reais para sua própria campanha, um valor inalcançável para os seus principais adversários no pleito de 2016.

De qualquer forma, o fundo de financiamento público de campanhas poderá equilibrar um pouco o jogo, viabilizando também os candidatos com dificuldades de angariar doações substanciais de pessoas físicas. Esse fundo, de valor estimado em R$ 1,7 bi, será financiado em parte por emendas das bancadas ao Orçamento e em parte pela economia gerada com o fim da propaganda partidária obrigatória fora do período eleitoral (não a propaganda eleitoral) – mais uma inovação da reforma política.

Os recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), para o primeiro turno das eleições, serão distribuídos entre os partidos políticos, obedecidos os seguintes critérios:

I – 2% (dois por cento), divididos igualitariamente entre todos os partidos com estatutos registrados no Tribunal Superior Eleitoral;

II – 35% (trinta e cinco por cento), divididos entre os partidos que tenham pelo menos um representante na Câmara dos Deputados, na proporção do percentual de votos por eles obtidos na última eleição geral para a Câmara dos Deputados;

III – 48% (quarenta e oito por cento), divididos entre os partidos, na proporção do número de representantes na Câmara dos Deputados, consideradas as legendas dos titulares;

IV – 15% (quinze por cento), divididos entre os partidos, na proporção do número de representantes no Senado Federal, consideradas as legendas dos titulares.

Por fim, sobreleva anotar que os limites de gastos para as campanhas eleitorais, embora tenham sofrido alterações, continuam muito altos se considerarmos que os candidatos disporão basicamente do financiamento público de suas campanhas e de doações de pessoas físicas. Com os limites de gastos estipulados, os candidatos que contarem com maiores vultos de doações advindas de pessoas físicas ainda poderão se sobressair sobremaneira aos demais.

Senão vejamos: as campanhas para presidente da República terão gastos limitados à vultuosa quantia de R$ 70 milhões; enquanto que nas campanhas para governador o limite de gastos varia em relação ao número de eleitores e vai de R$ 2,8 milhões, em Estados com até 1 milhão de eleitores, a R$ 21 milhões, em Estados com mais de 20 milhões de eleitores; o valor também varia em virtude do número de eleitores nas campanhas para senador e pode chegar a até R$ 5,6 milhões; sendo que nas campanhas para deputado federal o limite é de R$ 2,5 milhões e para deputado estadual ou distrital o limite é R$ 1 milhão.

Outras mudanças

Foram implementadas diversas outras alterações na Lei nº 9.504/97, que estabelece normas gerais para as eleições, e na Lei nº 9.096/95, que dispõe sobre partidos políticos, dentre as quais vale destacar algumas aqui:

1) Diminuição do tempo mínimo para registro de partido novo no TSE e para registro do domicílio eleitoral do candidato na circunscrição / filiação partidária: poderá participar das eleições o partido que, até seis meses antes do pleito (antes era um ano), tenha registrado seu estatuto no Tribunal Superior Eleitoral; e para concorrer às eleições, o candidato deverá possuir domicílio eleitoral na respectiva circunscrição pelo prazo de seis meses (antes era um ano antes do pleito) e estar com a filiação deferida pelo partido no mesmo prazo.

2) Vedação ao registro de candidatura avulsa, ainda que o requerente tenha filiação partidária.

3) Permitida a antecipação da arrecadação eleitoral por meio de crowdfunding na internet, antes do registro de candidatura, cuja campanha para arrecadação também não será considerada campanha antecipada: desde o dia 15 de maio do ano eleitoral, é facultada aos pré-candidatos a arrecadação prévia de recursos através de instituições que promovam técnicas e serviços de financiamento coletivo por meio de sítios na internet, aplicativos eletrônicos e outros recursos similares, mas a liberação de recursos por parte das entidades arrecadadoras fica condicionada ao registro da candidatura, e a realização de despesas de campanha deverá observar o calendário eleitoral.

4) Prevista expressamente a arrecadação de doações de pessoas físicas através da comercialização de bens e/ou serviços, ou promoção de eventos de arrecadação realizados diretamente pelo candidato ou pelo partido político.

5) Diminuição do limite às doações estimáveis em dinheiro relativas à utilização de bens móveis ou imóveis de propriedade do doador ou à prestação de serviços próprios, de R$ 80.000,00 (legislação anterior) para R$ 40.000,00 (quarenta mil reais) por doador.

6) Permissão do impulsionamento pago de conteúdos nas redes sociais: autorizados os custos com a criação e inclusão de sítios na internet e com o impulsionamento de conteúdos contratados diretamente com provedor da aplicação de internet com sede e foro no País, incluindo-se entre as formas de impulsionamento de conteúdo a priorização paga de conteúdos resultantes de aplicações de busca na internet.

7) Não são mais considerados gastos eleitorais nem se sujeitam a prestação de contas as seguintes despesas de natureza pessoal do candidato: a) combustível e manutenção de veículo automotor usado pelo candidato na campanha; b) remuneração, alimentação e hospedagem do condutor do veículo usado pelo candidato; c) alimentação e hospedagem própria; d) uso de linhas telefônicas registradas em seu nome como pessoa física, até o limite de três linhas.

8) Ficará dispensada de comprovação na prestação de contas a cessão de automóvel de propriedade do candidato, do cônjuge e de seus parentes até o terceiro grau para seu uso pessoal durante a campanha.

9) Não será permitida a veiculação de material de propaganda eleitoral em bens públicos ou particulares, exceto de: I – bandeiras ao longo de vias públicas, desde que móveis e que não dificultem o bom andamento do trânsito de pessoas e veículos; II – adesivo plástico em automóveis, caminhões, bicicletas, motocicletas e janelas residenciais (não tem previsão de muros ou portões), desde que não exceda a 0,5 m² (meio metro quadrado).

10) Constituirá crime, no dia da eleição, a publicação de novos conteúdos ou o impulsionamento de conteúdos nas aplicações de internet, podendo ser mantidos em funcionamento as aplicações e os conteúdos publicados anteriormente.

11) Será vedado ao partido receber, direta ou indiretamente, sob qualquer forma ou pretexto, contribuição ou auxílio pecuniário ou estimável em dinheiro, inclusive através de publicidade de qualquer espécie, procedente de pessoas físicas que exerçam função ou cargo público de livre nomeação e exoneração, ou cargo ou emprego público temporário, ressalvados os filiados a partido político.

12) Os partidos políticos deverão adequar seus estatutos às alterações introduzidas pela reforma política até o fim de 2017.

As diversas alterações sofridas pela legislação eleitoral merecem um estudo mais apurado, dividido por temas – partidos políticos, registro de candidaturas, propaganda e prestação de contas -, que será publicado em novos artigos.

Infelizmente, como vem acontecendo há mais de uma década, o legislador se preocupa com detalhes como o material e o tamanho da propaganda, por exemplo, ao invés de privilegiar o equilíbrio justo nos recursos financeiros que serão arrecadados e gastos por cada um dos candidatos.

Um aumento absurdo de controles burocráticos nas prestações de contas, que sequer os sistemas da Justiça eleitoral conseguem acompanhar, ao invés da democratização das campanhas.

Nenhuma proposta concreta de democracia participativa, com mecanismos eficazes de participação popular, de prestação de contas obrigatória dos mandatos, de revogação de mandatos improdutivos, de interação entre o titular dos mandatos (o povo) e seus representantes.

E o sistema eleitoral brasileiro, o único proporcional aberto do mundo no que se refere às eleições para o parlamento, permanece intocável, o que só contribui para o aumento do déficit democrático existente, que recai em um descrédito crescente no Poder Legislativo e nas próprias instituições.

Os comentários estão encerrados.