O esquerdismo de classe média, sua vã filosofia… e as tarefas que importam.

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Nós fomos aculturados no âmbito das ciências, em todas elas, mas em especial no âmbito das ciências da sociedade e da humanidade, a pensar com a cabeça europeia. Usamos um conjunto de instrumentais de classificação e análise que foram montados para analisar uma sociedade específica, importamos todos os equipamentos teóricos usados lá e buscamos também adaptar nossa realidade para caber na teoria deles.

Mas nossa sociedade é muito diferente, nossa formação social e econômica é própria e nosso povo bebe de valores e culturas ancestrais muito diferentes e geralmente desprezadas pelo pensamento eurocêntrico e dominante.

Onde há um “pobretariado”, uma expressão que uso para me referir aos mais pobres do proletariado, formado para ser energia muscular para mover o moinho colonial, pensa-se estar manejando uma classe operária fabril; onde há um gerente de engenhos e negócios coloniais conectados ao patrão externo, pensa-se ter uma burguesia; onde há capitães do mato e funcionários do implemento colonial, pensa-se ter uma classe média. Conceitos feitos pra analisar um tipo de sociedade são usados de forma mecânica e nada ajudam a entender a realidade tupiniquim.

O dilema brasileiro, antes mesmo de se discutir qualquer fórmula de sociedade pretendida, é o de romper a lógica do engenho colonial, moldado a partir de dois pressupostos: a moenda de sua gente, onde seu povo não é considerado uma parte essencial da nação, mas sim um mero combustível a ser gasto como energia muscular para mover a economia, sem qualquer respeito a direitos e a condições humanas dignas; e a sangria de todos os seus recursos naturais e dos produtos para as metrópoles estrangeiras, sendo sua elite econômica e política apenas uma gerente dos negócios dos verdadeiros senhores das metrópoles.

Constitui, portanto, o cerne do processo civilizatório (reformista/revolucionário) brasileiro a organização das forças populares com o objetivo de garantir melhorias de vida e direitos à imensa massa apartada de seu povo e romper com o domínio estrangeiro/colonial sobre sua economia. Estes são, então, essencialmente, os objetivos da luta política popular pela construção da nação brasileira.

Reformas estruturais não são nunca toleradas pelas elites brasileiras e latino-americanas. Estas reformas só aconteceriam com processos de ruptura da ordem, coisa que na história só ocorreu no caso cubano. Processos reformistas como o de Peron, na Argentina, de Vargas e Jango, no Brasil, e muitos outros, acabaram com intervenções externas das metrópoles ou com golpes militares ou civis endógenos, seguidos de ditaduras.

Neste fim de século XX e início de XXI, vimos acontecer na América Latina e no Brasil um processo inédito de mudança social por dentro da ordem democrática, com os governos progressistas e de compromisso popular reformista na Venezuela, Argentina, Brasil, Chile, Uruguai, Equador, Paraguai, Peru, Honduras, Nicarágua. Em um processo simultâneo de vitórias eleitorais e implantação de políticas de melhoramento da vida das classes populares, e de quebra da exploração externa que derrubaram, assim, os pilares da construção histórica do implemento sócio-colonial do nosso continente.

Insisto nisso! Não adianta uma classe média com discurso pseudo-radical, usando uma parafernalha de instrumentos de análise importados e pouco adaptados à realidade concreta deste Brasil profundo, querer “cagar regra” para a transformação social no Brasil. Fenômeno que acontece e se repete em cada país latino americano. Assim, age uma dita esquerda que não tem base popular, porque não conhece o povo e não se imiscuiu em sua vida e em seu ambiente. Assim age a esquerda não lulista (ou mesmo anti-lulista) dentro e fora do Partido dos Trabalhadores.

Agem aqui como se estivessem analisando o modelo europeu da época de Marx, ou logo depois da terceira internacional. Como se aqui houvesse uma classe operária e um povo organizado que sustentasse reformas potentes, a partir de um partido operário dotado de uma ciência da transformação social, construída em cima da lógica do desenvolvimento de forças produtivas clássicas do capitalismo. Como se apenas o desejo bastasse para a realização das tarefas de transformação social. Como se não se necessitasse de diversos fatores para que as forças populares tivessem sucesso. Como se a correlação de forças da sociedade fosse estruturalmente favorável aos interesses das classes populares e não o contrário.

Então, ao invés da esquerda-classe-média, pequeno burguesa, bradar estridentemente em seus tribunais instalados nos centros universitários, nas redes sociais ou nas praças bem arrumadas das zonas nobres das capitais e das grandes cidades, sobre o grau de pureza e compromisso ideológico de cada liderança, militante ou corrente política da esquerda brasileira, devia se debruçar sobre a realidade nacional, sobre nossa história, sobre nossas singularidades, sobre a composição física e cultural de nosso povo e, a partir daí, entender o papel libertador de cada tarefa política da esquerda e das forças populares neste momento histórico.

A principal tarefa nossa hoje é criar as condições para retomar a posse do governo brasileiro. No Brasil, a burocracia estatal federal e seus meios de fazimento e desfazimento – mais uma vez e sempre, me utilizando do vocabulário e do universo de entendimento do conterrâneo maricaense, Darcy Ribeiro -, são fundamentais para a estruturação de qualquer projeto de transformação social. Assim como de regressão social, como hoje estamos vendo com os golpistas.

Não se criarão essas condições com discursos auto-proclamatórios e nem com estreitamentos esquerdistas. Tenho dito que precisamos fazer com Lula o inverso do que o golpista e pena de aluguel Carlos Lacerda tentou com Getúlio Vargas: “Getúlio não pode ser candidato; em sendo não pode ganhar; ganhando não pode tomar posse; se tomar posse não pode governar!”. Portanto, cabe à esquerda brasileira, a esquerda que tem juízo e compromisso popular real, obviamente, garantir as condições para que Lula possa concorrer; concorrendo garanta a vitória eleitoral; e que tomando posse, garanta condições de governabilidade para realizar o que já realizou e possa seguir em frente na política de inclusão social e soberania nacional.

Não vamos ganhar eleições e governar sem fazer alianças e sem atrair um pedaço das elites para nosso campo. Como disse no artigo passado, seria preciso que existisse um partido lulista para organizar, com mais consistência programática e mais unidade política, nossos apoios ao centro, de políticos burgueses, mas com disposição reformista mínima. O PT, os demais partidos de esquerda e os movimentos sociais operam na lógica de reformas amplas e mais profundas e rumam em direção ao desejo/luta pelas transformações rumo ao socialismo. A existência de um outro partido de centro próximo a nós, ajudaria a construir reformas, nesta transição, dentro dos marcos do capitalismo existente, para tornar nosso país menos desigual e mais soberano. (obviamente esse partido não seria nem será o PT, ainda que alguns tenham “entendido” numa leitura apressada e oportunista do meu último artigo que eu seria burro de propor isso como se fosse uma reedição da aliança com o PMDB)

Retomar a política de inclusão social e soberania nacional e criar as condições para aprofundá-la é a tarefa mais revolucionária para o Brasil. Romper a lógica do engenho colonial significa romper com o modelo de dominação que construiu uma economia dependente do fluxo de sangria de recursos e produtos para o capitalismo imperialista e romper com a lógica da apartação social das massas populares, cuja única serventia no projeto colonial dominante é a de servir como energia humana descartável para o implante econômico de origem externa.

Preparar então um povo para si (no sentido marxista de classe) e uma economia voltada para ele são tarefas essenciais. A construção deste projeto nacional de povo (que fique aqui bem entendido como classes populares) e de economia é a tarefa do momento. A campanha pela eleição de Lula em 2018 deve ter esta dimensão cognitiva, como não teve tanto no passado. Deve ter a tarefa de construção/anunciação da retomada de um projeto de povo e nação.

A caravana do Lula pelo Nordeste, que a imprensa comercial finge ignorar, está tendo um papel animador/mobilizador. Esta campanha, ampliada até 2018, deve manter este caráter. Mobilizar e organizar o povo para garantir o direito de Lula ser candidato. Mobilizar e organizar o povo para a vitória eleitoral de Lula e nossos candidatos a deputados e senadores para ter governabilidade congressual. Mas, sobretudo, organizar o povo e a esquerda para sustentar um ciclo longo de mudanças sociais mais profundas, utilizando para isso o imenso poder de mobilização e fazimentos que a retomada do governo nos dará. A ideia, já iniciada pela Fundação Perseu Abramo e pela direção nacional do PT, intitulada “O Brasil que o povo quer”, pode e deve se transformar neste grande movimento pelo “Volta Lula” como um projeto de povo e de nação.

Washington Quaquá é Presidente estadual do PT RJ e foi prefeito de Maricá por oito anos (dois mandatos), tendo a cidade eleito o sucessor do PT.

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