Nesta noite eu perdi o sono por sua causa. Minha vida, de algum modo, se confunde com a sua. Quando eu era pequena via você pela televisão, cercado por milhares de pessoas. Mesmo sem entender muito do que se tratava, eu sabia que aquilo era uma coisa boa porque assim parecia para a minha mãe, professora da rede pública que, divorciada, sustentava sozinha os dois filhos. Aquelas manifestações imensas que você liderava estimulava minha mãe e seus colegas a fazerem suas próprias reuniões menores e eu sentia orgulho dela por isso. Eu estudava em uma escola de freiras dominicanas, onde algumas delas eram muito interessadas em justiça social, faziam parte da Teologia da Libertação. Eu cresci sabendo que tínhamos um problema político gravíssimo com a dívida com FMI, que a seca e a fome no nordeste era um problema de má vontade política, que os militares eram perigosos, que os pequenos agricultores e indígenas tinham um problema gravíssimo com o latifúndio. E sabia, também, que a sua liderança enfrentava estes problemas. Quando eu entrei na faculdade, o diretório acadêmico dos estudantes era um ambiente muito bacana por sua causa. Eu percebia nos mais velhos uma coragem estimulada por você e por toda a diversidade que andava à sua volta. Foi tanta a responsabilidade que você assumiu… Você tinha uma aparência tão bruta, mas era tão refinado no pensamento quando dava entrevistas. Dava vontade de te olhar. Quando você conseguiu derrotar a ditadura com os outros e concorreu à presidência pela primeira vez, eu estava lá te vendo reconstruir o Brasil. Mesmo tão jovem, eu estava com meu primeiro filho no meu colo assistindo o golpe baixo da campanha televisiva do Collor contra você. Hoje este filho tem vinte e nove anos. Você fazia política como um professor, ensinava de um jeito que era fácil de entender. Eu votei em ti sabendo que não ganharia, que aquela aparência bruta assustava algumas pessoas mais “distintas”. E por isso mesmo foi tão bom ver você crescer em todas as eleições que vieram e que você perdeu. Você foi motivo de muitas discussões acaloradas com amigas e em família. Você acendeu em mim a paixão e a fé na política. Você me fez entender a importância da política.
O tempo passou e nos primeiros anos da abertura democrática eu não senti confiança em nenhum presidente. Mas foi lindo ver como o partido dos trabalhadores, que você criou, foi crescendo e ocupando espaço no legislativo e no executivo de cidades e estados. Quando você ganhou as eleições pela primeira vez eu fui até a Av. Paulista para te ver, estava grávida de oito meses da minha filha que hoje tem quinze anos. E o que aconteceu com o Brasil foi lindo de se ver… Me emociono pensando que meus filhos não sentirão a mesma coisa que você me fez sentir: uma confiança de que o Brasil pode civilizar. Logo de cara veio a notícia de que o Brasil não dependia mais da obediência ao FMI porque você pagou a dívida. Depois vieram todas as notícias sobre o investimento do Estado Brasileiro no nordeste, era a boa vontade política que faltava. Eu já estava fazendo o doutorado e você liderando uma união sul americana jamais vista, sentíamos um poder regional que nunca havíamos sentido antes. Já professora há anos, eu comecei a ver alunxs pobres e negrxs entrando na faculdade, muitos sendo os primeiros de toda a família a cursar o ensino superior. Eu vi isso, ninguém me disse. E vieram todas as universidades federais e os institutos federais, onde jovens pobres que não podiam sair da sua cidade para estudar finalmente tiveram acesso a uma formação voltada para o desenvolvimento local. Foi tão ética e corajosa a sua solidariedade à Bolívia no caso da Petrobrás… Foi tão bom, mas tão bom, sentir, finalmente, orgulho do meu presidente. Eu estava no carro dirigindo e ouvindo o rádio quando você disse que a crise nos Estados Unidos teria o efeito de apenas uma marolinha aqui no Brasil. Eu confiei na sua palavra e ela mereceu a confiança. Foi tão bom poder confiar em você. E veio a notícia de que o Brasil saiu do mapa da fome da ONU. E vieram as notícias de muitos países que estavam copiando o projeto do bolsa família, até a cidade de Nova Iorque. O Brasil influenciando o mundo, parecia até que Oswald de Andrade tinha razão sobre a importância do Brasil no destino da história… A propósito, quanta coragem na política internacional, hein! Com você, tínhamos um herói internacional vivo. E veio a lei Maria da Penha e cresceu o movimento feminista. E cresceu o movimento negro. A aproximação internacional que você fez com a África a trouxe mais para perto. E a história da Africa na formação do Brasil ganhou destaque no currículo escolar. O trabalho doméstico, talvez o mais caracterizado pela herança escravagista, ganhou outro estatuto legal. O salário mínimo aumentou para todos. Políticas importantes para a arte, cultura, ciência e tecnologia. Ciência sem Fronteiras. Os investimentos na agricultura familiar. O apoio aos bancos comunitários, O sonho da casa própria realizado. Você lidou com interesses nacionais e internacionais tão poderosos e perversos sobre o Brasil e conseguiu fazer tanto apesar disso…
Você é um equilibrista, Lula. Você é gingado. Agradeço todos os dias por ter vivido este período da história do Brasil contigo e com quem estava junto. Meus filhos não poderão viver os bons sentimentos políticos que eu vivi, vai demorar… Os mais jovens não viram o passado do qual você nos tirou, quando se entenderam por cidadãos o governo já era petista há anos. Os problemas que ainda persistiam foram atribuídos a você e seu partido. Foi mais fácil cooptar estes jovens no golpe contra “o governo petista”. E agora o que vivemos é uma rasteira que joga o Brasil para aquele passado novamente, como se não pudéssemos mais ter esperança na possibilidade de civilizar o Brasil… Mas eu não quero terminar esta declaração de amor com o pessimismo inevitável. Quero terminar esta declaração com o seu otimismo, mesmo quando você será preso. Eu estava lá quando você disse algo parecido com “podem prender o Lula, mas o Lula já está na mente do povo”. É verdade, meu amado politico, você está na minha cabeça como uma das mais lindas memórias. O medo não vai vencer a esperança e a disposição para a politica, como a que foi a sua. A verdade é que eu e mais milhares de brasileiros te amamos e eu agradeço imensamente por ter tido a oportunidade de te amar. A disposição para luta continua enquanto eu choro para derreter a terrível imagem das paredes confinando a esperança.
O golpe foi baixo, mas você é Grande.
Fernanda C Borges